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O filme Blade Runner – o caçador de andróides tem como temática principal a formação da identidade do sujeito.

A ideia do filme é a de que são criados, por engenheiros genéticos, robôs – os replicantes – utilizados fora da Terra como escravos em tarefas da colonização planetária. São idênticos aos humanos e, no mínimo, tão inteligentes quanto. No entanto, seus corpos são mais fortes e ágeis – são eles úteis, mas perigosos (como toda máquina). É nesse ponto que fazemos uma conexão com Foucault quando ele diz que o corpo é dócil, pode ser domesticado de acordo com as necessidades da sociedade na qual ele se insere. Para Dr. Eldon Tyrell, o projetista das mentes e chefe da corporação que idealiza os replicantes, os replicantes devem ser “mais humanos que os humanos” – sua meta é o comércio. A única característica humana que esses robôs não têm é a emoção.

O teste feito pelos blade runners para identificar um replicante consiste em perguntas que tentam despertar a emoção no sujeito. No entanto, esse é o único elemento que os robôs não têm: são emocionalmente inexperientes. Pensava-se que iriam adquirir emoções próprias com o passar dos anos, por isso, foi criado um mecanismo de proteção – eles só viveriam por quatro anos.

A Tyrell Corporation (a corporação que ‘fabrica’ esses robôs) fornece, então, um passado aos replicantes, para melhor controlar suas emoções. Trabalham com a memória, através de fotos (simuladas) e histórias (“implantes” de um passado fictício). Tem uma questão curiosa da lição de piano: a personagem não sabe se ela se recorda das lições ou se isso é o passado de uma outra pessoa implantado em sua “memória”. Esse é um elemento de enorme contribuição para a formação da identidade do sujeito – ele é o que é pelo seu passado, sua história, sua memória.

O filme acaba com a briga entre o policial (Deckard) e o replicante, quando este diz que “a hora de morrer é quando as lembranças se perdem no tempo”. O robô diz também que ser escravo é viver com medo, porque, na realidade, eles não sabem quem são e nem quando vão morrer.

Portanto, podemos concluir que o sujeito é movido por coisas que ele não domina. A formação de sua identidade não pode ser explicada pela ótica da Razão, mas sim como uma construção permanente. A contribuição do filme Blade Runner  se dá na medida em que supõe a possibilidade de existência de um sujeito criado com determinada função e sem memória. Quando sua utilidade acaba para a sociedade, ele é banido da mesma. A noção de inconsciente, de Freud; a construção do eu a partir do outro, de Lacan; e a influência de discursos diversos na formação da identidade do sujeito, de Foucault, são descartadas no mundo ficcional de Blade Runner.

 

O processo (1925), de Franz Kafka.

 

O processo de Kafka instaura ficcionalmente um mundo invertido, de sentido angustiante, oculto, no qual o homem, o personagem Josef K., se vê sem controle sob sua própria vida quando é informado que um processo judicial se desenrola sobre ele. Os representantes desse mundo de Kafka são os burocratas que informam a K. sua condição, assim como outros três personagens – o advogado, o pintor e o sacerdote –, que participam do processo, dando ao acusado ajuda ou informações sobre como o mesmo se dá e progride.

O início da obra coloca o leitor numa posição similar a do personagem principal, Josef K.: num choque e diante uma ausência de informações a respeito do que está ocorrendo – que processo é esse, qual é a acusação a que K. está sendo submetido, quem está o acusando, qual será seu destino – esses são os questionamentos que tanto o leitor quanto o próprio personagem se fazem. O narrador, friamente, não nos informa nada, iniciando a narrativa in media res.

A literatura fantástica de Kafka instaura esse universo caótico, no qual os projetos humanos são jogados ladeira a baixo, pois o homem é privado de iniciativa e liberdade. Através dos detalhes de sua narrativa, Kafka caracteriza e melhor define a alegoria. Um homem que, estranhamente, é acusado e que vê o controle de sua vida fugir de suas “mãos”, é uma representação simbólica do vazio da existência. O poder e o conhecimento completo acerca do processo encontram-se numa “instância” superior, a Justiça, e sobre a qual o homem não tem o menor controle, nem acesso.

Kafka diz que “a mais profunda das experiências vividas é a de um mundo rigorosamente sem sentido, que exclui toda esperança, e que é o nosso mundo, o mundo do homem, do homem burguês contemporâneo” (MERQUIOR, 1965, p. 60); e isso se reflete em sua literatura, que mostra um mundo abandonado por Deus e controlado por juízes supremos. Essa sensação de desamparo é mostrada em O processo, nos capítulos finais, nos quais Josef K. encontra-se totalmente “sem chão” e constata que de fato não poderá recorrer mais a nada para resolver sua questão.

A visão do homem enquanto processo – e não enquanto humano – é também um ponto interessante do livro, na medida em que está de acordo com o novo olhar do homem do século XX, que estava começando na publicação de O processo, e que altera sua identidade e mesmo a noção de sujeito. Essa nova perspectiva de olhar é representada na obra, alegoricamente, pela não distinção entre homem e processo, algo que pode ser exemplificado na passagem: “– Tu és Josef K. – disse o sacerdote […] – Sim – confirmou K., […] agora conheciam seu nome pessoas com as quais se encontrava pela primeira vez; e quão belo era antes apresentar-se primeiro e apenas depois estabelecer relações!” (KAFKA, 2006, p. 236). Essa passagem nos mostra o quanto o homem Josef K. era conhecido por todos não pela sua essência, mas sim porque sua história, seu processo, era algo que provocava interesse e fascínio nas pessoas – era uma espécie de fetiche.

Essa relação foi também apontada por Benjamin em suas “Teses sobre filosofia da história” (1985), onde aponta a fragmentação do sujeito moderno e também a idéia de autômato, um indivíduo que segue regras sem vontade própria, sem consciência, carregado pela história – o que pode ser bem aplicado na leitura da obra de Kafka, que mostra exatamente esse sujeito sem as rédeas da própria vida e que é, como um boneco, dirigido através de cordas. Para Benjamin, o estilo alegórico da literatura de vanguarda contemporânea “fixa o sentido da temporalidade como certeza da morte e da decadência” (MERQUIOR, 1965, p. 60) e isso percebemos na pele do personagem Josef K. com o passar de seu processo.

 

Referências bibliográficas:

 

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In Obras Escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_________________. “Paris do Segundo Império”. In Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

_________________. “Teses sobre filosofia da história”. Kothe, Flávio (org.). São Paulo: Ática, 1985.

KAFKA, Franz. O processo.  Trad. Ed. Martin Claret. São Paulo: Martin Claret, 2006.

MERQUIOR, José Guilherme. “Murilo Mendes ou a poética do visionário”. In A razão do poema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

Trechos de “O alienista”, de Machado de Assis:

“De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. […] O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!” (cap. II)

“Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor.” (cap. II)

“Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto.” (cap. V)

“— A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.

— Sim?

— É verdade. Lá está o Mateus…

— O albardeiro?

— O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e…

— Tudo isso doido?

— Ou quase doido, obtemperou o padre.” (cap. V)

“— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos, nem a rebeldes.” (cap. VI)

“— Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos: se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava, na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da Matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira.” (cap. X)

 

Simão Bacamarte, personagem do conto de Machado de Assis, é uma caricatura dos “homens da ciência”, aqueles que levam ao pé da letra o que leem nos tratados ou livros científicos, aplicando em sua prática o que aprenderam sem nenhum bom senso. Se todos são loucos, quem é o são?

Bacamarte acaba por se deparar com esse questionamento quando percebe que, pelas classificações que tece, todos da cidade acabam sendo taxados de loucos. É um bom texto para refletirmos sobre a prática atual de psiquiatras e psicólogos, que muitas vezes desejam seguir literalmente as descrições dos manuais de transtornos mentais.