O Processo, Kafka

O processo (1925), de Franz Kafka.

 

O processo de Kafka instaura ficcionalmente um mundo invertido, de sentido angustiante, oculto, no qual o homem, o personagem Josef K., se vê sem controle sob sua própria vida quando é informado que um processo judicial se desenrola sobre ele. Os representantes desse mundo de Kafka são os burocratas que informam a K. sua condição, assim como outros três personagens – o advogado, o pintor e o sacerdote –, que participam do processo, dando ao acusado ajuda ou informações sobre como o mesmo se dá e progride.

O início da obra coloca o leitor numa posição similar a do personagem principal, Josef K.: num choque e diante uma ausência de informações a respeito do que está ocorrendo – que processo é esse, qual é a acusação a que K. está sendo submetido, quem está o acusando, qual será seu destino – esses são os questionamentos que tanto o leitor quanto o próprio personagem se fazem. O narrador, friamente, não nos informa nada, iniciando a narrativa in media res.

A literatura fantástica de Kafka instaura esse universo caótico, no qual os projetos humanos são jogados ladeira a baixo, pois o homem é privado de iniciativa e liberdade. Através dos detalhes de sua narrativa, Kafka caracteriza e melhor define a alegoria. Um homem que, estranhamente, é acusado e que vê o controle de sua vida fugir de suas “mãos”, é uma representação simbólica do vazio da existência. O poder e o conhecimento completo acerca do processo encontram-se numa “instância” superior, a Justiça, e sobre a qual o homem não tem o menor controle, nem acesso.

Kafka diz que “a mais profunda das experiências vividas é a de um mundo rigorosamente sem sentido, que exclui toda esperança, e que é o nosso mundo, o mundo do homem, do homem burguês contemporâneo” (MERQUIOR, 1965, p. 60); e isso se reflete em sua literatura, que mostra um mundo abandonado por Deus e controlado por juízes supremos. Essa sensação de desamparo é mostrada em O processo, nos capítulos finais, nos quais Josef K. encontra-se totalmente “sem chão” e constata que de fato não poderá recorrer mais a nada para resolver sua questão.

A visão do homem enquanto processo – e não enquanto humano – é também um ponto interessante do livro, na medida em que está de acordo com o novo olhar do homem do século XX, que estava começando na publicação de O processo, e que altera sua identidade e mesmo a noção de sujeito. Essa nova perspectiva de olhar é representada na obra, alegoricamente, pela não distinção entre homem e processo, algo que pode ser exemplificado na passagem: “– Tu és Josef K. – disse o sacerdote […] – Sim – confirmou K., […] agora conheciam seu nome pessoas com as quais se encontrava pela primeira vez; e quão belo era antes apresentar-se primeiro e apenas depois estabelecer relações!” (KAFKA, 2006, p. 236). Essa passagem nos mostra o quanto o homem Josef K. era conhecido por todos não pela sua essência, mas sim porque sua história, seu processo, era algo que provocava interesse e fascínio nas pessoas – era uma espécie de fetiche.

Essa relação foi também apontada por Benjamin em suas “Teses sobre filosofia da história” (1985), onde aponta a fragmentação do sujeito moderno e também a idéia de autômato, um indivíduo que segue regras sem vontade própria, sem consciência, carregado pela história – o que pode ser bem aplicado na leitura da obra de Kafka, que mostra exatamente esse sujeito sem as rédeas da própria vida e que é, como um boneco, dirigido através de cordas. Para Benjamin, o estilo alegórico da literatura de vanguarda contemporânea “fixa o sentido da temporalidade como certeza da morte e da decadência” (MERQUIOR, 1965, p. 60) e isso percebemos na pele do personagem Josef K. com o passar de seu processo.

 

Referências bibliográficas:

 

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In Obras Escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_________________. “Paris do Segundo Império”. In Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

_________________. “Teses sobre filosofia da história”. Kothe, Flávio (org.). São Paulo: Ática, 1985.

KAFKA, Franz. O processo.  Trad. Ed. Martin Claret. São Paulo: Martin Claret, 2006.

MERQUIOR, José Guilherme. “Murilo Mendes ou a poética do visionário”. In A razão do poema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.